a mulher invisível

o homem invisível (eua, 2020) ★★★★☆

nos primeiros minutos de o homem invisível, a arquiteta cecilia entra às pressas no carro da irmã e pede que ela acelere. sem entender o motivo de tanta agitação, e vendo o marido de cecilia se aproximar, a motorista reluta em partir. mais tarde, já em local seguro, as duas conversam sobre que houve.

– ele batia você?, a irmã questiona.

– entre outras coisas.

a fala curta e crua espelha o que acontece quando um relacionamento abusivo chega ao fim. a rotina de violência, escondida por uma fina fachada de felicidade, passa batida mesmo entre pessoas próximas – e uma muralha de dor emerge em torno de quem esteve preso a uma relação desse tipo. profundamente abalada, cecilia mal consegue caminhar alguns metros fora de casa até a caixa de correio. seu pavor do mundo, contudo, parece ter fim depois que ela recebe a notícia que seu marido opressor, um renomado pesquisador de óptica, cometeu suicídio deixando-lhe uma herança de cinco milhões de dólares.

não demora para que a sorte se revele uma armadilha e o alívio de cecilia dê lugar à paranoia: ela acredita que está sendo observada e, mais que isso, manipulada pelo seu finado digníssimo. é a partir daqui que temos o grande trunfo da nova versão desse clássico de h.g. wells. ao transferir o protagonismo da obra para cecilia, o diretor e roteirista leigh wannell apresenta o verdadeiro terror enfrentado por alguém que sofre abuso doméstico, a sua invisibilidade social.

é paradoxal, e tragicamente comum, que ao se expandir para fora dos limites do lar-doce-lar, a violência também seja encoberta e ignorada. isso torna o gaslighting o inimigo mais pungente de cecilia: quando junta forças para verbalizar seus medos, ela é desacreditada e tratada como louca; por conta de atitudes do marido, pessoas queridas se afastam; vítima de violência física e psicológica, ela é responsabilizada pela sua situação – inclusive por policiais e médicos, profissionais cuja função seria proteger quem se encontra em vulnerabilidade. a cena de fuga com vários seguranças é uma triste representação do desamparo sofrido por cecilia que, mesmo ferida e imobilizada, ainda é tratada como ameaça à segurança. tudo isso assusta, revolta e sufoca, mas não é muito diferente do que muitas mulheres enfrentam todos os dias.

o filme ainda tem seus momentos menos inspirados. por exemplo, entrega muito rápido a resposta sobre a principal desconfiança da protagonista, desperdiçando a chance de explorar mais camadas do terror. também é estranho que, após um período em cárcere privado, sofrendo todo tipo de privação e agressão de seu marido, cecilia não demonstre qualquer desconforto na companhia de seu cunhado – mesmo ao ficar sozinha com ele na mesma casa por longos períodos. além disso, algumas cenas de violência são demasiadamente gráficas, flertando de rabo de olho com o mau gosto, herança de outras obras do diretor como a franquia jogos mortais.

porém nada disso impede que encaremos a face do verdadeiro terror, que é não encontrar apoio ao sofrer violência doméstica, nem entre seus mais amados. a nova adaptação de o homem invisível tem ainda o mérito de tornar seu título irônico, já que é a mulher que acaba silenciada e escondida por conta de um problema real e urgente, que acontece bem embaixo de nossos narizes.

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