o gume do muro

a mãe (brasil, 2022) ★★★☆☆

o sol mal levantou quando o sono tranquilo de valdo preenche o primeiro olhar do dia de dona maria. mãe e filho dividem o mesmo cômodo numa casa simples da periferia de são paulo. apesar do pouco chão entre as camas, ele segue imune aos preparativos dela, o descanso agora embalado pela sinfonia familiar dos barulhos da rotina matinal. como a própria vida, o amor de dona maria é duro, seu cuidar se veste de armadura rígida que cobra obediência. foi muito calo, sapo e sangue na jornada, agora ela tem certeza do caminho, o certo, para guiar o filho. mas adolescente entende tudo errado: a obstinação que ignora outras estradas é exatamente o que as descortina (ou as ressalta) nessa idade. quando valdo some da visão da mãe, dona maria começa uma busca incansável para encontrá-lo – ou a verdade.

costurando a ficção com o drama real do movimento mães de maio, o filme mostra uma angústia com nome próprio e retrato: os primeiros dias em que um filho desaparece. a saga acompanha dona maria, porém é valdo, com sua ausência, que recheia as falas e leva a história adiante. e é a esperança de resgatá-lo que gera tensão crescente. pena que o clima criado perca força com a mão burocrática do diretor cristiano burlan, que às vezes se demora em deixar tudo explicadinho demais, protocolado e assinado em três vias. perseguida pela rapa, por exemplo, dona maria aparece na cena seguinte descansando para não deixar margem de dúvida que conseguiu escapar – o que poderia ser presumido logo depois que ela retorna pra casa. em outras partes, a beleza da narrativa é comprometida pelo zoom como recurso artificial para garantir que algo seja percebido. por todo protocolo, vale destacar a interpretação notável de marcélia cartaxo no papel principal, que tenta, e muitas vezes consegue, escapar do quadrado em que o papel (não) se desenvolve. falo disso daqui a pouco.

o longa tem momentos bastante inspirados, como o plano-sequência que mistura memórias de dona maria com sua realidade e o monólogo que declama patativa do assaré. a fotografia soturna contribui para erguer um universo denso, com uma periferia fria e impessoal onde até as cores se apresentam mais tristes e desbotadas. de pouco movimento, não se ouve conversa ou música por lá. além disso, cristiano burlan acerta em cheio ao tecer fato e trama com maestria, originando uma produção autoral e orgânica que não pode ser definida como apenas ficção ou documentário – mas que, também, pode ser ambos. outro êxito do tom naturalista pode ser percebido na construção da história, com pit-stops seguidos de alívio e frustração: como se compilasse crônicas cotidianas, novos conhecidos não viram amigos, notícias não são confiáveis, lei e crime se confundem. muitos parênteses são abertos, poucos se fecham. da mesma forma que acontece na vida.

a obra acaba pecando quando se afasta da realidade. primeiro, ao sugerir uma protagonista num patamar “superior” ao do seu entorno. partindo do princípio que um personagem é aquilo se mostra na tela, dona maria não nutre relações com a vizinhança, não demonstra simpatia ou abertura aos próximos e é indiferente até ao papo da dona do mercadinho. nas ocasiões em que sai de sua propriedade para dialogar, no bar ou na casa ao lado, ela termina ameaçando denunciar seus interlocutores – e a confiança com que o faz mostra a pouca estima que tinha por eles. a única conexão de dona maria é imposta, com seu filho, a quem pede que volte “direto pra casa” depois da aula. ao fim, faltou cair a ficha dela do quanto a intransigência de seus princípios, que a mantinha inalcançável e reativa, mesmo a piadas, teve papel em manter valdo desprotegido do mundo que ela desconsiderava. seria uma transformação mais poderosa no arco dramático da personagem – sem se basear em culpa, mas no entendimento de que forte é quem abraça o acaso e aceita a vulnerabilidade. é o que torna a vida suportável e as lutas, possíveis. uma mãe que ama a prole mas não chora seu sumiço causa desconforto.

outra decisão inverossímil do enredo é o acolhimento irrestrito que dona maria encontra em todas as pessoas. todas. da desconhecida no ônibus ao chefe do tráfico, qualquer um é dotado de empatia mágica para se compadecer do drama dela. ninguém lhe devolve o filho, mas cada um se revela disponível para a mãe batalhadora, que não enfrenta filas e, diferente das estatísticas, é tratada com muita dignidade sempre que vai à delegacia (que não é da mulher). em resposta a desacatos, alguns proferem bravatas de início, depois baixam o tom e fornecem conselhos e dinheiro para dona maria. a causa dela vira mais insistência que resistência. a película traz também o inverso dessa incoerência: valdo surge no começo como um jovem leve e maduro, que recusa convites duvidosos e insiste em ir pra aula, sempre muito educado. sem qualquer justificativa, aparece no terceiro ato como um rebelde inconsequente que desafia autoridades. talvez aquela periferia fique no mundo invertido.

o movimento mães de maio nasceu da luta das famílias de mais de 500 pessoas assassinadas na periferia de sp em maio de 2006. até hoje, ninguém foi responsabilizado pela chacina. dar luz ao tema é fundamental, assim como fazê-lo com respeito e sensibilidade. ficou faltando equalizar o naturalismo da forma ao conteúdo em a mãe. um assunto de tamanha complexidade, de incontáveis nuances, estratos e fatos sociais envolvidos, exige cuidado extremo para não soar superficial nem apelar a soluções fáceis, como o chavão de igualar policiais e criminosos. mesmo quando movidos pela ambição, só um deles tem proteção do estado e deve garantir a segurança, só um deles se relaciona com as comunidades, um deles compõe uma estrutura que reforça a desigualdade, o outro é vítima dela. não basta olhar à distância, é preciso ser parte, ser palco e ser visto de volta. enquanto dona maria velava o sono do filho, o olhar de valdo mirava longe.

com quantos nãos se faz um passado

não! não olhe! (eua, 2022) ★★★★☆

presente sem presença anunciada, mancha sob véu de mérito, pauta recorrente entre um sopro e um gole no café dos biomas corporativos: fulaninho de tal que foi contratado, promovido ou perdoado devido ao peso de seu sobrenome. no showbiz, a vantagem do berço não se limita à fofoca da firma: é abertamente procurada, promovida e aproveitada como recurso para tração ou sustento de carreiras. hollywood ou projac, um pedigree garante, se não porta aberta, acesso a atalhos impermeáveis a quem nasceu pessoa física. mantida por medo e resignação, a prática favorece sem reservas um padrão de artistas que perpetua a classe dominante – e marginaliza os que não se enquadram, como a família haywood.

na trama principal, alistair haywood era o jóquei negro do primeiro registro de fotografias em movimento. mas sua raça, seu nome e sua identidade foram apagados dos livros e seu protagonismo histórico, jamais reconhecido. a desilusão é passada como herança e ainda reverbera em seus últimos descendentes. o tataraneto oj desistiu da carreira na indústria depois de experiências inexpressivas em produções ruins. responsável pela administração dos bens da família, não consegue salvar da falência seu maior negócio, um rancho que empresta cavalos treinados para gravações. com um nome que a sociedade se acostumou a desconfiar, oj protege-se das pessoas com silêncio e distância, conectando-se profundamente apenas com seus animais. sua irmã emerald, por outro lado, de natureza intensa e espontânea, vê seu envolvimento nos assuntos de casa como bico e sonha em ser atriz. a ela coube zelar pelo patrimônio intangível, como porta-voz do legado familiar ao repassar os protocolos de segurança. valendo-se da atenção obrigatória ao discurso, emerald denuncia a injustiça e busca aliados para haywood – sem qualquer reação dos profissionais no estúdio. o resgate de um passado grandioso parece somente justificar a presença de figuras tão deslocadas no ambiente. ainda que tenham fala, oj e emerald não são ouvidos. de origem entrelaçada ao surgimento da mesma indústria que buscam pertencer, suas presenças viram formalidade, seus talentos são subestimados e suas narrativas, menosprezadas. os mesmos nãos de sempre.

sem posses ou laços, o fim dos haywood parece inevitável. mas quando eventos inexplicáveis tomam o céu do rancho, eles se juntam para filmar o desconhecido e enriquecer com a venda das imagens. embora soe superficial, a solução vai fazê-los encarar seus passados: primeiro, para encontrar nas próprias lembranças aquilo que os afastou. segundo, ao recriar ancestralidade, tomando o registro de imagens de um grande feito como mensagem deixada ao mundo – desta vez, lutando também para que as escrituras não se dobrem a outros interesses.

o filme reforça o que tentamos sublimar: o ontem não desaparece como mágica. nas histórias paralelas, repetido ou evitado, ele se costura aos personagens em forma de silêncio e culpa. na trama maior, é revisitado a partir da dialética violenta que ergueu nossas grandes nações: a exploração e o genocídio de povos como fonte inesgotável de recursos. nesse sentido, não há como lutar sozinho, e a única migalha de segurança é admitir submissão, desviando o olhar para não encarar os algozes. talvez por isso o corpo do invasor seja moldado pelo desenrolar de panos que lembram velas de navios, uma espécie de caravela de outro mundo.

em relações de poder, o lugar de cada um pode ser demarcado pelo uso do não (nope! do título original). no geral, quem mais fala não é quem mais se beneficia do status quo. sem capital social, ouvimos mais não. barrados desde cedo, aprendemos que fugir dele é buscar vida plena. esse medo da rejeição vai nos paralisar e anestesiar por toda a vida. grandes mudanças surgem do empoderamento do não – o que exige, necessariamente, fazer as pazes com o passado. devemos verbalizar e abusar do não, torná-lo troféu do autoconhecimento, preservação da própria fronteira, ajuste de prioridades, ato compartilhado de sabedoria. o não atrai conflitos e pinta um alvo em nossas costas, mas é estrada, veículo e pedágio na direção do futuro que nasce do novo passado. o não é nosso.

nova companheira

tô ryca! 2 (brasil, 2022) ★★★☆☆

o terceirizado é sempre o primeirizado a se dar mal. (selminha oléria silva)

normalmente, qualquer história fala de transformação. de três porquinhos a star wars, o protagonista é apresentado, chamado à aventura e, ao final dessa jornada, torna-se uma versão mais madura de si – tendo sua crença comprovada ou convertida, seu objetivo alcançado ou destruído. curiosamente, esse desenvolvimento não existe no primeiro tô ryca!, de 2016: do dia pra noite, selminha se descobre milionária e passa por situações diversas a fim de garantir o novo status. nada nesse percurso, contudo, provoca reflexão ou impacto na moça, o que não é necessariamente um problema. a questão é que selminha é construída apenas por um amontoado de gags batidas que perpetuam retratos preconceituosos do pobre alienado e indiferente ao seu recorte social. mais que seguir um padrão narrativo, a transformação nesse caso seria… o mínimo?

tô ryca 2 segue o caminho oposto. aqui, confrontada com a suspeita de que sua herança teria outra dona, selminha tem os bens bloqueados e vê sua renda minguar a um salário mínimo por mês – a saber, essa grande penitência que move a película é a realidade de 30 milhões de brasileiros. de forma inesperada, o retorno à pobreza acaba levando a ex-nova-milionária a se engajar na comunidade, usando sua voz para reverberar a recém-adquirida consciência de classe.

o processo, claro, é gradual. no primeiro ato, ainda encontramos aquela selminha do primeiro filme. esnobe, fecha o vidro do carro pra não encarar o ônibus lotado ao lado. patrona de uma associação de moradores, não demonstra empatia por quem a procura, resumindo sua função a posar pra fotos e assinar cheques. o conforto proporcionado por sua fortuna a distancia de conexões reais, mesmo com os mais próximos. atos de generosidade, como oferecer fartas gorjetas, logo se revelam motivados pela ostentação. numa sociedade em que o sujeito é definido por suas posses, selminha torna-se a própria fortuna, que define, justifica e controla suas relações. nesse cenário, os vínculos viram contratos, o outro é desconsiderado e tudo existe para venerar e orbitar em torno do grande senhor, o capital. essa deformação cognitiva fica explícita quando selminha corrompe amizade em trabalho, criando o cargo (assalariado) de “melhor amiga” para que sua vizinha de infância converta-se em funcionária.

embora impedida de usufruir de seus bens, a protagonista segue certa de que sua pobreza é passageira. o delírio narcisista em que se encontra só acaba depois que ela precisa se humilhar por um lugar onde possa dormir. agora sim, é aqui que o filme ganha uma outra dimensão e a personagem, mais camadas. as desventuras de selminha em busca de emprego expõem um mercado precarizado e rígido ao trabalhador, indiferente a seu cotidiano e direitos básicos. se antes, porém, a crueldade dessas situações era diluída em piadas cujo alvo era o oprimido, agora o humor denuncia e destrona o opressor. selminha se recusa ao papel esperado de vítima e, ainda que precise se submeter às engrenagens do sistema, não permite que tais condições a moldem ou silenciem. cabe reconhecer que poucas atrizes atuais estariam a par do desafio de tratar temas sociais sérios com a leveza de samantha schmütz. sua atuação sensível permite que a trama se aprofunde sem se afastar da comédia, e que a personagem ganhe complexidade sem perder carisma.

em determinada cena, depois de uma tempestade causar estragos em sua comunidade, selminha aproveita uma reportagem ao vivo para cobrar compreensão de sua patroa e, no calor do momento, acaba se demitindo – chora, bong joon-ho. o discurso se expande para além da causa própria e chega a gerar uma reflexão pertinente sobre o papel social da imprensa: cobrindo o caso de forma impessoal, a jornalista é lembrada por selminha que está mais próxima daquela realidade do que acredita. “seu patrão, o dono da emissora, é milionário. já você é pobre“. usando, pela primeira vez, sua projeção para atender uma demanda real das pessoas, a nova comunista angaria um mutirão para ajudar a população atingida pelas chuvas (e a triste coincidência do filme estrear enquanto a região serrana do rio enfrenta uma tragédia pelo mesmo motivo torna a narrativa mais real e relevante).

mas não dá pra se empolgar. depois de engatar numa crescente, a história derrapa no desfecho. sem propor respostas para os problemas apresentados, o roteiro decide correr pra resolver o que não precisa de solução. pior: preguiçosamente, vale-se do mesmo recurso usado no primeiro filme, o vilão arrependido. tem ainda o casamento coletivo no final que contamina a obra com um gosto forte de novelão. o discurso poderoso e comprometido de antes, assim como o fato dele tomar forma num filme popular, continua importante – mas seu destino revela a resistência de nossos criadores em sair de cima do muro. no caso de um próximo filme, que selminha continue a pensar criticamente sobre o sistema em que se encontra – e, quem sabe, perceba que uma fortuna de r$ 300 milhões como a dela só é possível a partir de muita exploração.

a mulher invisível

o homem invisível (eua, 2020) ★★★★☆

nos primeiros minutos de o homem invisível, a arquiteta cecilia entra às pressas no carro da irmã e pede que ela acelere. sem entender o motivo de tanta agitação, e vendo o marido de cecilia se aproximar, a motorista reluta em partir. mais tarde, já em local seguro, as duas conversam sobre que houve.

– ele batia você?, a irmã questiona.

– entre outras coisas.

a fala curta e crua espelha o que acontece quando um relacionamento abusivo chega ao fim. a rotina de violência, escondida por uma fina fachada de felicidade, passa batida mesmo entre pessoas próximas – e uma muralha de dor emerge em torno de quem esteve preso a uma relação desse tipo. profundamente abalada, cecilia mal consegue caminhar alguns metros fora de casa até a caixa de correio. seu pavor do mundo, contudo, parece ter fim depois que ela recebe a notícia que seu marido opressor, um renomado pesquisador de óptica, cometeu suicídio deixando-lhe uma herança de cinco milhões de dólares.

não demora para que a sorte se revele uma armadilha e o alívio de cecilia dê lugar à paranoia: ela acredita que está sendo observada e, mais que isso, manipulada pelo seu finado digníssimo. é a partir daqui que temos o grande trunfo da nova versão desse clássico de h.g. wells. ao transferir o protagonismo da obra para cecilia, o diretor e roteirista leigh wannell apresenta o verdadeiro terror enfrentado por alguém que sofre abuso doméstico, a sua invisibilidade social.

é paradoxal, e tragicamente comum, que ao se expandir para fora dos limites do lar-doce-lar, a violência também seja encoberta e ignorada. isso torna o gaslighting o inimigo mais pungente de cecilia: quando junta forças para verbalizar seus medos, ela é desacreditada e tratada como louca; por conta de atitudes do marido, pessoas queridas se afastam; vítima de violência física e psicológica, ela é responsabilizada pela sua situação – inclusive por policiais e médicos, profissionais cuja função seria proteger quem se encontra em vulnerabilidade. a cena de fuga com vários seguranças é uma triste representação do desamparo sofrido por cecilia que, mesmo ferida e imobilizada, ainda é tratada como ameaça à segurança. tudo isso assusta, revolta e sufoca, mas não é muito diferente do que muitas mulheres enfrentam todos os dias.

o filme ainda tem seus momentos menos inspirados. por exemplo, entrega muito rápido a resposta sobre a principal desconfiança da protagonista, desperdiçando a chance de explorar mais camadas do terror. também é estranho que, após um período em cárcere privado, sofrendo todo tipo de privação e agressão de seu marido, cecilia não demonstre qualquer desconforto na companhia de seu cunhado – mesmo ao ficar sozinha com ele na mesma casa por longos períodos. além disso, algumas cenas de violência são demasiadamente gráficas, flertando de rabo de olho com o mau gosto, herança de outras obras do diretor como a franquia jogos mortais.

porém nada disso impede que encaremos a face do verdadeiro terror, que é não encontrar apoio ao sofrer violência doméstica, nem entre seus mais amados. a nova adaptação de o homem invisível tem ainda o mérito de tornar seu título irônico, já que é a mulher que acaba silenciada e escondida por conta de um problema real e urgente, que acontece bem embaixo de nossos narizes.

dança da solidão

 

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midsommar: o mal não espera a noite (eua, 2019) ★★★★☆

fazer terror no escuro é fácil, qualquer sombra é susto, qualquer bu é ui. à luz do dia é outra história – tem de se esforçar pra construir uma atmosfera que faça jus ao incômodo na poltrona. trata-se de um desafio cumprido por ari aster em midsommar, que amplia e subverte os elementos de seu primeiro lançamento, hereditário. a claustrofobia virou superexposição. enquanto antes o cenário dominava os personagens, dessa vez ele os complementa, sendo revelado à medida que a natureza das pessoas vem à tona. se a câmera focava em detalhes e objetos específicos, agora o olhar é panorâmico e aberto. o que era acinzentado explodiu em saturação.

dani, a protagonista, depois de enfrentar seu maior inferno pessoal, embarca para a suécia com o namorado e seus amigos rumo à aldeia natal de um deles. além de espairecer, o objetivo é participar da tradicional celebração nativa de verão, que inclui dias de festa sob um sol que quase nunca se põe. a alegria, contudo, azeda à medida que os turistas descobrem a verdadeira natureza daquele grande ritual.

nesse processo, o filme suga a atmosfera para um vórtice de inquietação e mal-estar. a paquera se torna dívida, a lombra, cativeiro, o choro, dominação e a dança, sentença. nenhum passo em falso é admitido, e qualquer um é eliminado. só há esperança na rendição, e toda entrega implica em sacrifício, repulsa e catarse.

mais do que apenas revisitar-se em contraposições, aster explora a natureza humana e seu doloroso medo da solidão. seja por perder a família, por viver uma relação arruinada ou por se encontrar num país estranho, a obra expõe a nossa busca inerente pelo coletivo. estamos fadados a nos agrupar, ainda que pelos motivos errados – mas existe erro quando o propósito é o bem geral?

ela é o diabo

hereditário (eua, 2018) ★★★★☆

família é a primeira referência de qualquer um: são os laços de sangue (ou a ausência deles) que desenham a base do que consideramos natural, e também de onde brotam os assuntos das nossas sessões de terapia. na estreia do diretor ari aster, para além da criação e da genética, a herança familiar se mostra um fardo amargo de ser reconhecido – e doloroso de ser vivenciado. hereditário conta a história de annie, uma artista cuja ascendência é pontuada por silêncios, distâncias e transtornos mentais. ao lidar com a morte da mãe, ela precisa encarar também seus próprios demônios antes que sejam passados adiante à sua prole. mas talvez seja tarde demais.

com precisão cirúrgica, o filme manipula o enredo tal qual estratégia de guerra. ajudados pela extraordinária fotografia, cenários e maquetes se confundem, deixando atores deslocados no espaço, que ora parece grande, ora próximo, ora claustrofóbico, mas sempre dominante. os personagens circulam perdidos como ratos de laboratório e, como marionetes que ganham vida, revelam, a cada aproximação, suas próprias fissuras e complexos – de origem real, psicológica ou, talvez, sobrenatural. dessa forma, camadas e mais camadas vão sendo construídas na trama antes que o verdadeiro terror aconteça.

espíritos e demônios têm se tornado cada vez mais comuns nas produções americanas. já são o tema de maior incidência nos filmes de terror, batendo psicopatas e serial killers e figurando quatro vezes mais que antagonistas vampiros ou zumbis. mas se nos anos oitenta nos causava arrepio a imagem do pai possuído de o iluminado, ou do jovem endemoniado de horror em amityville, hoje a ameaça se manifesta, quase sempre, na mulher. salvo os títulos em que o “canal” usado pelo além é uma criança, o elo mais vulnerável da história costuma ser feminino – pior: em contraponto a uma figura masculina protetora, calma e dotada de razão.

é sintomático e preocupante. se as mulheres têm conquistado cada vez mais espaço na sociedade, ainda falta um bocado para se firmar entre grandes realizadores. a produção hollywoodiana reforça o chavão caduto de que, quando o bicho pega, são os marmanjos que mantêm, plácidos, o pragmatismo necessário pra lidar com os problemas. não que isso seja garantia de sobrevivência: às vezes é esse ceticismo, e a expectativa feminina depositada nele, que leva os personagens a óbito. não obstante, quando são as heroínas da história, enfrentando bravamente toda sorte de perigos sobre-humanos, elas fatalmente acabam sendo também parte da causa (quando não toda) dos infortúnios da trama.

“reflexo da sociedade”, a produção cultural não está isenta de responsabilidade e sua representação não deve indicar anuência. há séculos, líderes, lendas e religiões rebaixam as mulheres, atribuindo culpas que as acompanham por toda a vida. o cinema não precisa reproduzir esse padrão – como movimento artístico, um de seus papeis é questionar o status quo. porém a indústria é forte, e quem a comanda ainda é o homem. a mudança é necessária, esperada, urgente. filmes são obras poderosas, atravessam décadas, influenciam gerações inteiras, marcam vidas. o tempo urge, mas está a nosso favor. o machismo, felizmente, não é hereditário.

domingo maior

jogador nº 1 (eua, 2018) ★★☆☆☆

aquelas matérias do fantástico explicando o meme da moda acabaram de ganhar uma versão cinematográfica de 140 minutos. o novo filme do spielberg é uma aventura do barulho, num mundo virtual pra lá de pirado, contada para senhorinhas de setenta anos que assistem ao jornal nacional numa tv de tubo, bombril na antena, ronco e pantufa, lá em cotia. tudo é ex-pli-ca-di-nho pra que ninguém se perca no emaranhado de referências. “mas a senhora viu que o moço ali desvendou o mistério? não? peraí, que ele vai ler o bilhete em voz alta pra deixar mais claro”. duas horas e vinte minutos de uma lenga-lenga que black mirror entrega em meia hora.

a trama empolga: num mundo assolado pela pobreza, as pessoas encontram refúgio numa realidade alternativa. na rede chamada oasis, qualquer um pode ser o que sempre sonhou. prestes a morrer, o criador desse mundo mágico deixa três enigmas que darão a quem desvendá-los poder absoluto sobre aquele universo. até aí, beleza. a execução da história, contudo, torna explícito que quem a adaptou nunca pegou num console antes – ou então mandou pras cucuias qualquer aprendizado de user experience que os games proporcionaram. por exemplo:

  • os trajes: as pessoas ainda dependem de óculos enormes pra viver uma realidade virtual. pior: é preciso colocar todo um equipamento com roupas, sensores e fios para se desligar do mundo de verdade. preguiça! se eu tiver que colocar todo esse aparato pra jogar colheita feliz, adeus! ainda mais em 2045.
  • os gráficos: no oasis, a qualidade das imagens é similar ao que víamos no saudoso ps2. décadas e mais décadas desenvolvendo uma tecnologia que substituiria a realidade e o resultado é um avatar que parece a eva byte. só lembrando, o filme se passa em 2045.
  • os deslocamentos: uma das grandes vantagens da internet e dos games é clicar em algo, e – pronto! – estar lá. em jogador nº 1, você precisa literalmente caminhar (com seus pezinhos do mundo real) pra chegar a qualquer lugar. qual a vantagem de jogar algo assim? boa pergunta. inclusive: 2045.

ainda assim, a película impressiona pela concepção visual de uma comunidade carente do futuro e pelo remix que faz de uma obra-prima do kubrick. de resto, muita autorreferência e nenhuma contribuição à filmografia de seu diretor. tudo sem nexo, como os crimes transmitidos pro mundo todo sem interrupção da polícia, a maior empresa do mundo que espia as ruas mas não tem circuito interno de vigilância e a guerreira que lidera uma resistência mas sofre melindres por um sinal de nascença. só faltou o link ao vivo com o márcio canuto.

o jovem segundo a dc

liga da justiça (eua, 2017) ★★★☆☆

no universo dos super-heróis, poucas figuras representam o adolescente de maneira tão sensível quanto peter parker. criado por stan lee, o garoto é a síntese daquela delicada equação de entusiasmo e insegurança que todos passamos – ou esticamos – pela vida. em suas histórias, as pressões, descobertas e paranoias juvenis andam ao lado de aventuras surpreendentes. além de resolver as agruras de sua super-identidade, parker precisa lidar com os conflitos de sua nova condição, o tal triângulo das bermudas entre a infância e a fase adulta. não por acaso, na adaptação de sam raimi pro cinema, os poderes recém-adquiridos, para além de apresentar o personagem, expõem também sua puberdade latente. na versão recente, o homem-aranha está menos contemplativo e mais debochado, porém sua aura frágil e bagunçada permanece intacta, típica de quem deseja, com a mesma intensidade, salvar o mundo e cinco minutos a mais de sono.

numa narrativa fantástica, povoar o panteão de grandes heróis com personagens franzinos faz todo sentido. mais que gerar empatia com o target, diversificando tipos para identificação, pequenos salvadores também funcionam como alívio cômico, amaciando a tensão causada por lutas e mortes inevitáveis, e decodificadores da trama, questionando a ação no decorrer da história para explicar à audiência o que acontece na tela. do ponto de vista da indústria, jovens astros são mão de obra fácil e prestativa – sem salários astronômicos ou deslumbres de divas. já no aspecto cultural, o foco nos mais novos é impositivo: a cultura de massa, afinal, persegue, espelha e enaltece a juventude (alô, morin!).

por tudo isso, é frustrante acompanhar um dos maiores nomes em cultura jovem do mundo, a dc comics, perder a mão ao retratar a “sua versão de peter parker”. em liga da justiça, barry allen é apresentado como um jovem delinquente que acredita na inocência de seu pai, condenado pelo assassinato da esposa. o peso dramático, contudo, acaba aí. ao ser escalado para a turma dos heróis, ainda nos primeiros minutos do longa, barry se converte numa metralhadora humana de gracejos. em todas as cenas do flash, seu alter ego poderoso, a piadinha é certa – e o constrangimento, também. não só pela atuação forçada de ezra miller, mas, principalmente, pelo tom jocoso que destoa da “embalagem hbo” que veste os títulos da dc. essa impressão gera incômodo e desconforto. parece que tem alguma ponta solta, a conta não fecha, as partes não se encaixam. de tanto insistir no caricato, o reforço engraçado logo azeda e transforma o personagem, espécie de universitário cheio de energia, num bobo da corte desesperado por atenção.

a situação degringola de um jeito que chega a colocar a própria construção da obra em risco. o tom sombrio perde a credibilidade à medida que o flash vai se abobalhando. a gravidade das escolhas pode ser medida em duas cenas específicas: quando ele é atingido pelo vilão, lobo da estepe, e na hora de salvar refugiados de uma área de risco. ambos os momentos geram, acredite, gargalhadas nas pessoas – não por apresentarem um bom repertório de anedotas (na verdade, são partes tensas e até trágicas), mas porque o público passou a associar o herói ao riso fácil. a questão, entretanto, segue aberta: qual, ou quem, de fato, é o motivo da piada ali?

numa saga com tantos protagonistas, é compreensível a dificuldade em desenvolver de pronto um novo personagem cheio de camadas e motivações. complicado talvez, impossível nunca: basta olhar, no mesmo filme, para o ciborgue. quase tão jovem quanto o flash, ele se vale do mistério para simular certa profundidade dramática. não se trata, claro, de um hamlet reinventado, mas o roteiro é respeitoso e cumpre seu papel de mostrar e instigar, um território onde barry allen apenas tropeça. ao retratar o caçula dos heróis de forma parva e sonsa, a dc comics deixa escapar também o jeito que vê os adolescentes, uma das maiores fatias do seu público – nada além de piada.

bonecas russas

a noiva (rússia, 2017) ★★☆☆☆

em março deste ano, vladimir putin surpreendeu o mundo com um discurso que, em suma, defendia que “as mulheres precisam do respaldo do homem” – isso no dia internacional delas. alguns meses antes, deputados russos aprovaram projeto de lei que descriminalizava a violência doméstica (ainda que dados apontem que, por lá, a cada 40 minutos, uma mulher seja assassinada por parentes ou parceiro). em todo o país, a legislação ainda proíbe as mulheres de exercerem mais de 450 tipos de emprego. se, no mundo todo, a igualdade de gênero ainda é um sonho a ser perseguido, na rússia ela sequer pode ser vislumbrada – e ter esse contexto em mente é fundamental para entender a noiva.

ambientado numa época em que o domostroy ainda era regra (o código de conduta russo, que vigorou até a revolução de 1917, defendia, entre outras coisas, que “a mulher que é boa, trabalhadora e silenciosa é como uma coroa para o seu marido”), o filme tem início tenso: na tentativa de registrar no papel a imagem de sua noiva morta (que insiste em não ficar parada), um fotógrafo acaba desencadeando uma maldição que acompanhará sua família por várias gerações. o ritual macabro é justificado pela lenda de que, naquele tempo, acreditava-se que o negativo da foto guardaria a alma de quem faleceu. a partir daí, a história se desloca para o presente e perde grande parte do seu elemento trágico, mantendo, contudo, sua carga de significados.

como nas melhores obras de terror, o título usa a metáfora para comentar sobre uma realidade que já é apavorante o suficiente, a união como destino imposto a moças – não é à toa que uma das cenas mais assustadoras envolve exatamente o “enlace matrimonial” forçado. a trama também segue ancorada nos preparativos de uma festa de casamento que vai se revelando, a cada minuto, uma cerimônia de sacrifício. se por um lado nos causa revolta a submissão com que a protagonista parece encarar todas as situações, por outro nos frustra perceber que ela não encontra apoio em qualquer pessoa próxima, nem mesmo entre as mulheres que já passaram por tudo aquilo. a grande vilã da história também reforça o pesadelo (e, muitas vezes, a sina) de qualquer jovem russa: uma noiva amargurada, austera, calada, que se esconde entre as paredes da casa e exige a castidade de suas meninas. é interessante notar como o design de produção combina com a fotografia para fazer o discurso soar atrasado – todo o cenário e a caracterização dos personagens não diferem muito entre as épocas, a não ser por um filtro envelhecido que evidencia quando estamos diante de um flashback. uma analogia que revela que nada, afinal, mudou muito ali.

o desenvolvimento dos personagens é curioso. assim como na narrativa cristã, as mulheres do filme são praticamente extremos opostos: a santa devota ou a pecadora da vida. já os homens seriam o intermédio: sem qualquer traço de personalidade, pairam como amálgamas das contradições de um patriarcado que, embora latente, não encontra sua razão de ser. infelizmente, as interpretações não podem ser avaliadas porque as cópias de a noiva distribuídas no brasil são dubladas em inglês. isso estraga grande parte do clima, já que elimina o som original ambiente e a sincronia dos movimentos labiais. a sensação é a de que os áudios foram todos gravados em estúdio, derrubando o universo sonoro construído para a narrativa (é frustrante ver cenas, como uma de perseguição na floresta, sem qualquer barulho de passos, de vento, de mosquito).

por mais que tente lembrar (ou seja vendido como) um terror hollywoodiano, a noiva apenas expõe o quanto a sociedade russa é diferente da ocidental. se estamos engatinhando nas questões de direitos humanos, por lá elas ainda estão em concepção. assim como cadáveres com pálpebras pintadas para simular olhos abertos, o registro soviético que nos chega é grosseiramente falsificado. como se preservados por um negativo antigo, valores arcaicos permanecem vivos e perigosos – e precisam ser destruídos. o quadro é cruel e a noiva é, na verdade, a vítima.

terapia de choque

chocante (brasil, 2017) ★★★☆☆

sabe quando você acorda de ressaca, lava o rosto, coloca umas roupas estranhas e vai trabalhar? os anos noventa foram mais ou menos isso. depois da euforia da década anterior, o povo tomou um engov e fingiu que tava tudo bem – mas se o planeta estava grogue, imagina o brasil. era época de usar (e esgotar) a fórmula das boybands na carona do sucesso mundial dos new kids on the block. em chocante, um desses grupos resolve, vinte anos depois, voltar aos palcos para reviver seus dias de one-hit wonder.

com uma abertura surpreendente, de timing cirúrgico, o filme traz um primeiro ato inspirado e refrescante. a apresentação hilária dos personagens dá ritmo à história, assim como as insistentes referências a uma determinada morte empurram o humor até o seu limite. embora quase todo o conjunto esteja afiado, quem se destaca é a fã inveterada da banda, interpretada por débora lamm. histérica e otimista ao extremo, ela cospe energia e palavras erradas, tornando sua quézia mais carismática até mesmo que a criança do elenco (klara castanho).

mas aí vem o flop: no segundo ato, a impressão é que aquilo tudo saiu do controle. a película afunda em dramas familiares que não se resolvem e figuras que não acrescentam ao enredo. as piadas vão ficando cada vez mais raras, tontas e repetidas. o que salva esse pandemônio é o improviso de marcus majella, que transforma seus devaneios no espelho em pequenas e irresistíveis esquetes. pena que isso logo se torne – também – enfadonho ao requentar pela terceira vez o mesmo artifício para fazer graça. o desfecho singelo e abrupto, porém, ajuda a recuperar um bocado da fé perdida em chocante.

o longa é ainda um deleite estético: tem produção de época caprichada, trilha sonora chiclete e efeitos especiais sutis. embora a trama reforce alguns estereótipos (a mulher que enche o saco do marido, o gay pintoso e enrustido etc), o roteiro pega bem leve-leve nas piadas escrotas – o que é bastante singular vindo de um título com bruno mazzeo entre os realizadores. parece que alguém aqui está virando hominho. o resultado dessa ousadia pode não ser chocante, mas é, no mínimo, interessante.