o gume do muro
a mãe (brasil, 2022) ★★★☆☆
o sol mal levantou quando o sono tranquilo de valdo preenche o primeiro olhar do dia de dona maria. mãe e filho dividem o mesmo cômodo numa casa simples da periferia de são paulo. apesar do pouco chão entre as camas, ele segue imune aos preparativos dela, o descanso agora embalado pela sinfonia familiar dos barulhos da rotina matinal. como a própria vida, o amor de dona maria é duro, seu cuidar se veste de armadura rígida que cobra obediência. foi muito calo, sapo e sangue na jornada, agora ela tem certeza do caminho, o certo, para guiar o filho. mas adolescente entende tudo errado: a obstinação que ignora outras estradas é exatamente o que as descortina (ou as ressalta) nessa idade. quando valdo some da visão da mãe, dona maria começa uma busca incansável para encontrá-lo – ou a verdade.
costurando a ficção com o drama real do movimento mães de maio, o filme mostra uma angústia com nome próprio e retrato: os primeiros dias em que um filho desaparece. a saga acompanha dona maria, porém é valdo, com sua ausência, que recheia as falas e leva a história adiante. e é a esperança de resgatá-lo que gera tensão crescente. pena que o clima criado perca força com a mão burocrática do diretor cristiano burlan, que às vezes se demora em deixar tudo explicadinho demais, protocolado e assinado em três vias. perseguida pela rapa, por exemplo, dona maria aparece na cena seguinte descansando para não deixar margem de dúvida que conseguiu escapar – o que poderia ser presumido logo depois que ela retorna pra casa. em outras partes, a beleza da narrativa é comprometida pelo zoom como recurso artificial para garantir que algo seja percebido. por todo protocolo, vale destacar a interpretação notável de marcélia cartaxo no papel principal, que tenta, e muitas vezes consegue, escapar do quadrado em que o papel (não) se desenvolve. falo disso daqui a pouco.
o longa tem momentos bastante inspirados, como o plano-sequência que mistura memórias de dona maria com sua realidade e o monólogo que declama patativa do assaré. a fotografia soturna contribui para erguer um universo denso, com uma periferia fria e impessoal onde até as cores se apresentam mais tristes e desbotadas. de pouco movimento, não se ouve conversa ou música por lá. além disso, cristiano burlan acerta em cheio ao tecer fato e trama com maestria, originando uma produção autoral e orgânica que não pode ser definida como apenas ficção ou documentário – mas que, também, pode ser ambos. outro êxito do tom naturalista pode ser percebido na construção da história, com pit-stops seguidos de alívio e frustração: como se compilasse crônicas cotidianas, novos conhecidos não viram amigos, notícias não são confiáveis, lei e crime se confundem. muitos parênteses são abertos, poucos se fecham. da mesma forma que acontece na vida.
a obra acaba pecando quando se afasta da realidade. primeiro, ao sugerir uma protagonista num patamar “superior” ao do seu entorno. partindo do princípio que um personagem é aquilo se mostra na tela, dona maria não nutre relações com a vizinhança, não demonstra simpatia ou abertura aos próximos e é indiferente até ao papo da dona do mercadinho. nas ocasiões em que sai de sua propriedade para dialogar, no bar ou na casa ao lado, ela termina ameaçando denunciar seus interlocutores – e a confiança com que o faz mostra a pouca estima que tinha por eles. a única conexão de dona maria é imposta, com seu filho, a quem pede que volte “direto pra casa” depois da aula. ao fim, faltou cair a ficha dela do quanto a intransigência de seus princípios, que a mantinha inalcançável e reativa, mesmo a piadas, teve papel em manter valdo desprotegido do mundo que ela desconsiderava. seria uma transformação mais poderosa no arco dramático da personagem – sem se basear em culpa, mas no entendimento de que forte é quem abraça o acaso e aceita a vulnerabilidade. é o que torna a vida suportável e as lutas, possíveis. uma mãe que ama a prole mas não chora seu sumiço causa desconforto.
outra decisão inverossímil do enredo é o acolhimento irrestrito que dona maria encontra em todas as pessoas. todas. da desconhecida no ônibus ao chefe do tráfico, qualquer um é dotado de empatia mágica para se compadecer do drama dela. ninguém lhe devolve o filho, mas cada um se revela disponível para a mãe batalhadora, que não enfrenta filas e, diferente das estatísticas, é tratada com muita dignidade sempre que vai à delegacia (que não é da mulher). em resposta a desacatos, alguns proferem bravatas de início, depois baixam o tom e fornecem conselhos e dinheiro para dona maria. a causa dela vira mais insistência que resistência. a película traz também o inverso dessa incoerência: valdo surge no começo como um jovem leve e maduro, que recusa convites duvidosos e insiste em ir pra aula, sempre muito educado. sem qualquer justificativa, aparece no terceiro ato como um rebelde inconsequente que desafia autoridades. talvez aquela periferia fique no mundo invertido.
o movimento mães de maio nasceu da luta das famílias de mais de 500 pessoas assassinadas na periferia de sp em maio de 2006. até hoje, ninguém foi responsabilizado pela chacina. dar luz ao tema é fundamental, assim como fazê-lo com respeito e sensibilidade. ficou faltando equalizar o naturalismo da forma ao conteúdo em a mãe. um assunto de tamanha complexidade, de incontáveis nuances, estratos e fatos sociais envolvidos, exige cuidado extremo para não soar superficial nem apelar a soluções fáceis, como o chavão de igualar policiais e criminosos. mesmo quando movidos pela ambição, só um deles tem proteção do estado e deve garantir a segurança, só um deles se relaciona com as comunidades, um deles compõe uma estrutura que reforça a desigualdade, o outro é vítima dela. não basta olhar à distância, é preciso ser parte, ser palco e ser visto de volta. enquanto dona maria velava o sono do filho, o olhar de valdo mirava longe.